Independente das culturas ameríndias terem sido por um longo tempo, do ponto de vista eurocêntrico, excluídas da história mundial, como contexto do descobrimento da América, existe o seu lugar na história.
As culturas ameríndias se impõem entre os pilares da humanidade, tendo em vista a invenção da agricultura (revolução neolítica) e a organização da confederação (revolução urbana), anteriormente à descoberta, eram praticadas para além das culturas do Pacífico, em especial, no espaço mesoamericano que culmina nos povos maias e astecas e, ainda, nos Andes do Sul, nas regiões do chamado império Inca. Conforme Enrique Dussel, um dos maiores expoentes da filosofia da libertação latino-americana, este momento histórico – se estudado no tempo e no espaço – dá-se primeiramente no Oeste (precisamente na Mesopotâmia e logo depois no Egito). Mas que depois foi surgindo, sucessivamente e sem necessidade de contatos diretos, no Leste (vale do Indo e no vale do Amarelo, na China). Equivale dizer que desde a Mesopotâmia até o dito império Inca pode-se encontrar o mundo racional do mito, através de civilizações com a consciência racional situada no mesmo nível do neolítico de “diferentes” culturas, onde nelas estão incluídas as ameríndias.
Neste contexto, colocar as culturas ameríndias entre os pilares da humanidade seria levar em consideração a linguagem de seus mitos com uma racionalidade crítica e repleta de símbolos capazes de sistematizar seus discursos no sentido de uma grande obra e desenvolvimento da razão humana.
Sem a pretensão de meramente descrever a vida e sequer de “descrever” o mundo dos ameríndios, Dussel se propõe a sugerir o lugar desses povos na História mundial. Daí, ele considera – em sua interpretação – três graus de desenvolvimento cultural dos povos americanos na proto-história como o período entre a pré-história (história mesmo) e o período histórico propriamente dito (do ponto de vista europeu). O primeiro grau compreende o caso dos clãs e tribos de pescadores, caçadores e coletores nômades do norte e do sul. O segundo grau trata-se dos plantadores com aldeias de clãs, tribos e confederação de tribos (numa fase pré-urbana), das culturas e das Cordilheiras do sul e sudeste, desde o império Inca até os amazônicos (tupi-guarani e aruaques), caribes e, também, as culturas do sudeste, das pradarias e do sudoeste do atual Estados Unidos. Por fim, o terceiro grau significa a “América Nuclear” ou urbana, compreendendo a Meso-América dos Maias e Astecas do México e Guatemala até os Chibchas da Colômbia, até a região do império Inca que vai do Equador ao Chile e Argentina.
Assim como toda a humanidade, essas culturas ameríndias também tinham dado nomes aos rios e pradarias e, enfim, tinham incorporado ao seu mundo da vida, o sentido, a humanização e a história.
A SABEDORIA DOS GUARANI
Se em virtude de suas manifestações os guarani são considerados desprovidos de desenvolvimento, isto não passa de uma aparência se compreendidas suas experiências culturais que são carregadas de significados através da linguagem que muito se aproxima daquilo a que se convencionou chamar de moderno.
A palavra para o guarani é sinônimo de sua existência, levando em conta a palavra como o “núcleo inicial da pessoa”, mas este núcleo como a participação do divino. Daí, a palavra alma como a essência do ser humano que se mostra em todas as suas formas de expressão, ou seja, no sonho, no canto, no ritual e nas relações com o outro.
Mas a grande sabedoria do guarani está no fato da palavra ter uma história que é a própria história do guarani que tem por princípio a distribuição, o dar e o receber.
Não é por acaso que a palavra para o guarani, aliás, a palavra guarani, seja comunitária e econômica e que estabeleça um sistema de total “reciprocidade”. Para o guarani, a “festa” é o lugar da palavra que desde o seu nome faz parte de sua vida e de sua morte.
DESENVOLVER UMA ARTICULAÇÃO ENTRE AS FIGURAS DA RESISTÊNCIA E A SABEDORIA DOS POVOS INDÍGENAS
A princípio, entendo a “parusia” como a primeira figura na interpretação de Dussel sobre o encobrimento da América Latina, trata-se de considerar a compreensão da chegada dos espanhóis vindos do Oriente, “lá onde nasce a cada amanhecer o Sol”.
Implica dizer que os Astecas, representados por Moctezuma, acreditavam que o conquistador Hernán Cortês, vindo do infinito (mar), era Quetzalcóatl que chegava para retomar o seu trono, tendo em vista o relato de diversos presságios que os antigos mexicanos afirmavam ter visto.
Tendo em vista a sabedoria dos Astecas que tinham um conhecimento exato da medição do tempo sagrado, suas vidas eram reguladas por uma multidão hierarquizada de divindades. Ao saber do aparecimento dos recém-chegados, Moctezuma acreditou que Cortês era Quetzalcóatl. Mas tudo isso – do ponto de vista dos Astecas – no pleno exercício estratégico da racionalidade, pois os Astecas tinham uma visão “trágica” da existência, considerando que não havia lugar para nenhuma liberdade no acontecer humano e tudo estava predeterminado de antemão pela tradição da “velha regra de vida”.
Mas apesar de uma espécie de raciocínio que apontava para a chegada de uma divindade para ocupar o seu trono, Moctezuma ficou em dúvida se realmente era Quetzalcóatl ou apenas seres humanos invasores ou, ainda, se se tratava da volta mesmo de Quetzalcóatl confundido com o princípio divino como um dos rostos de Ometéotl (Divina-Dualidade). Neste último caso, seria uma catástrofe, considerando que os Astecas acreditavam viver o Quinto Sol, ou seja, uma realidade “fenomênica”, “temporal”, “terrestre”, onde se vive como “em sonhos”. Daí, o sexto sol significaria a época da servidão, a conquista espiritual, a morte dos deuses.
A segunda figura, compreendida como a “invasão”, acabara por negar completamente a sabedoria dos Tlamatinime (os que sabem algo ou os que sabem coisas), fora destruída toda a sua visão de mundo, provando que era inadequada e insuficiente para perceber a realidade. Escusado dizer que tarde demais os Astecas perceberam que Cortês e seus homens eram só um grupo de guerreiros.
Depois de algumas lutas a invasão é consumada e os Astecas derrotados, assim como os Maias e os Incas de Atahualpa até os confins da Terra do Fogo (sul) e o Alasca (norte), no decorrer dos anos de extermínio. Tudo em nome de uma Modernidade que se pretendia “emancipar” os oprimidos Astecas vítimas de seus sanguinários deuses. Em troca, lhes trouxeram o Sexto Sol que amanhece no horizonte com um novo deus, o deus do capital.
A terceira figura, ou “resistência”, mostra que – apesar dos fatos “gloriosos” dos valentes guerreiros da colonização, conforme a história oficial – desde o começo e dos equívocos do encontro, houve uma oposição sistemática por parte de homens e mulheres enfrentando armas de fogo, cavalos e cães treinados. Nesta resistência lutaram com coragem e diversas maneiras muitos caciques de Santo Domingo, Cuba, Porto Rico, Nicarágua, México, Honduras, Peru, etc., além das rebeliões de escravos africanos que, inclusive, teve a primeira realizada em 1522, em Santo Domingo. Existem ainda exemplos de resistência onde homens e mulheres lutaram até a morte de todo um povo e, até mesmo, o suicídio de povos inteiros para não se entregarem vencidos aos invasores.
Apesar do 500 anos em que a Modernidade nos “inventou” como Periferia, faz-se necessário “resgatar do esquecimento todos aqueles que souberam defender sua terra e sua liberdade” ou que, pelo menos, lutaram com esta finalidade deixando-nos a certeza de que nem sempre a força fala mais alto que a verdade.
AS TRÊS POSIÇÕES TEÓRICO-ARGUMENTATIVAS EM TORNO DA MODERNIDADE
Historicamente, as três posições consideradas teórico-argumentativas são as seguintes: 1) – a “Modernidade como emancipação” (Ginés de Sepúlveda), 2) – a “Modernidade como utopia” (Gerônimo de Mendieta) e, 3) – a crítica do “mito da Modernidade” (Bartolomé de las Casas).
1. A Modernidade se dá como “emancipação”, na medida em que o colonizador acreditando-se superior pela posse e manuseio de instrumentos e tecnologias chamadas desenvolvidas, submetem outras culturas chamadas inferiores ao seu modelo de civilização, onde oculta o processo da dominação e da violência. Processo este, aplicado como se fora uma ação pedagógica e necessária e que é, ao mesmo tempo, justificada pela falácia desenvolvimentista. É dizer que o colonizador entende a conquista como uma ação emancipatória, considerando a oportunidade que este dá ao colonizado de sair da barbárie e da imaturidade.
2. Esta segunda questão da Modernidade significa a tentativa de alguns missionários franciscanos, como se fora em defesa dos índios, estabelecerem um mundo utópico, onde fosse possível uma ação modernizadora. Em resumo, seria aceitar a possibilidade do índio como um outro e conservando todos os seus costumes, suas vestimentas e seus instrumentos e autoridades políticas, desde que este mundo “utópico” não pudesse parecer qualquer mínima ameaça aos dogmas do cristianismo.
3. A Modernidade é utilizada como mito necessariamente para justificar a violência civilizadora. Bartolomeu de las Casas coloca-se do lado do Outro, como a Alteridade e, mesmo admitindo a Modernidade e pretensa superioridade européia, critica as premissas que a sustentam como violência civilizadora, entendendo que – sendo a Europa cristã mais desenvolvida – deveria ensinar e mostrar a esses povos o seu processo de desenvolvimento, ou seja, mostrar o “modo” pelo qual se pode desenvolver.
MODERNIDADE E PROJETO TRANSMODERNO
Até então, a Modernidade, que surgiu em 1492, de acordo com determinadas condições históricas, tem sido a negação da Alteridade, ao mesmo tempo em que se define como “emancipatória” em relação à América Latina e se acoberta pela cultura mítica da violência.
A Transmodernidade é um paradigma que se apresenta na atualidade em prol da superação do mito da Modernidade. O projeto Transmoderno trata-se de um processo mundial de libertação político, econômico, ecológico, religioso, pedagógico, erótico, etc., onde a Alteridade que na Modernidade era tido como co-essencial seja, agora, assumida na horizontalidade e se realize igualmente.
Wilson Coêlho
Poeta, tradutor, palestrante, dramaturgo e escritor
“Este artigo não representa a opinião do ptvv.praxis.pro.br e é de responsabilidade do autor.”
Finalmente leio um ensaio que sai dos limites impostos pelas regras e temas eleições. Wilson Coêlho te felicito pela discussão sumamente contemporânea. Só lamento não ter encontrado nenhuma faixa do PT no ato de hoje no Masp sobre mais uma atrocidade cometida pela milícia que invade territórios indígenas no Vale do Javari para usurpar peixes, tracajás, fazendo contrabando e dispostos a matar por esse espaço em que vivem 26 culturas, muitas isoladas em convívio direto com a floresta como guardiões que dela são. Lamento que não seja prioritário ao PT questionar como se fazia nos anos 80 as investigações até descobrir os mandantes que esquartejaram Bruno Araújo Pereira e Dom Philips ultrapassando todos os limites da monstruosidade contra ambos…E ainda dizem que indígenas são antropófagos. Lamento que não haja esse dom em compartilhar também a dor entre brancos que se dispuseram a saltar a linha monocultural rumo a outras línguas, outros povos ancestrais e suas culturas em um partido que sempre teve meu voto.