O INDISCRETO “CHARME” DA BURGUESIA – Wilson Coêlho

Para refutar o editorial do Estadão intitulado “A irresponsabilidade do Sr. Barroso”, de 15 de julho de 2023, nada melhor do que parafrasear o título do filme “O discreto charme da burguesia”, do cineasta espanhol Luís Buñuel.

Fonte: https://lh3.googleusercontent.com/

Na “sinopse” já se pode distinguir o caráter capcioso do editorial quando ele afirma que a participação de Barroso num evento da UNE coloca em dúvida a sua imparcialidade, tendo em vista que esta ação é “coerente com a cultura que transforma os juízes do STF em celebridades”. Num primeiro momento, porque se esquece que essa “celebridade” a que foram alçados os ministros foi inaugurada pela própria direita, na medida em que colocou o juiz Sérgio Moro na condição de “paladino do oeste” fazendo da mídia um termômetro para medir a temperatura das respostas ao golpe contra a democracia em detrimento da verdade ou da falta de provas nos processos contra Lula e o PT. Depois, de forma supostamente sutil para os incautos, trata a UNE – União Nacional dos Estudantes como algo insignificante e a desqualifica como um segmento organizado da sociedade, não reconhecendo seu valor histórico em defesa da democracia, como se esta não tivesse o direito de dialogar e colocar em questão a realidade com a participação de órgãos do Estado.

Dizer que o Sr. Luís Roberto Barroso, como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), não deveria ter aceito o convite para comparecer a um congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) por se tratar de evento eminentemente político, mais que tentar enganar o público leitor desse periódico, é desqualificar a política como a base de toda ação humana e, principalmente, quando se trata de um movimento organizado por estudantes que são o futuro do país, os que pesquisam para entender a sociedade e as relações do mundo tanto no campo das ideias quanto na ocupação de espaços na sociedade, desde a criação até a produção, passando pela relação de classes.

Na sua condição de porta-voz dos banqueiros e dos grandes empresários da classe dominante, de capital nacional e estrangeiro, este veículo de “comunicação” se arvora ao direito de julgar como imprudente a aceitação do ministro em aceitar o convite, bem como as palavras e, ainda, de sugerir que ele ficasse calado, com a falsa justificativa de que “políticos são julgados por ministros do Supremo”.

Chamar de irresponsável um juiz que afirma ter “derrotado o bolsonarismo” não fere em nada a imparcialidade de sua ação. Primeiro, porque o juiz não fez nada além de cumprir com a Constituição cuja essência é a garantia do direito do estado democrático. Segundo, porque se trata da preservação das instituições que compõem os Três Poderes como possibilidade de equilíbrio da sociedade para executar as resoluções públicas, produzir as leis e julgar os cidadãos. Terceiro, não se trata apenas das palavras de um juiz, tendo em vista que esse mesmo bolsonarismo passou por um julgamento popular e foi derrotado nas urnas, apesar de toda a corrupção do governo Bolsonaro para ganhar as eleições, desde a sabotagem nas estradas para impedir a chegada do eleitores, a liberação de verbas para caminhoneiros e taxistas, compras de voto etc. Quando o ministro afirma ter “derrotado o bolsonarismo” ele apenas manifesta ter cumprido a lei com suas obrigações e compromisso do desejo popular que cabe ao seu cargo, não fala por si, mas profere uma sentença cujos verdadeiros juízes são o povo explorado, alijado dos projetos políticos e submissos reagindo aos desejos das classes dominantes.

Ter derrotado ao bolsonarismo nada mais é que uma reação contra a negação da ciência, a derrocada dos projetos sociais, o boicote e o corte de verbas para a educação, saúde, segurança e direito ao emprego. E, nisso, tem muita razão o ministro Barroso em não reconhecer sua atitude como erro e dizer que foi mal compreendido, reiterando a ideia de que não fala por si mesmo, mas profere apenas o cumprimento de seu dever junto ao desejo de um povo e, ainda, que como ministro deve satisfação à sociedade pelos seus atos. Cumpre ressaltar que a presença de Barroso no evento da UNE não passa de um ato de prestação de contas e esclarecimento do exercício de sua função em favor do cumprimento da Constituição que caracteriza o Brasil como um estado democrático.

A participação de Barroso no evento da UNE em nada interfere nos processos que pesam contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, considerando que o cerne da questão ou a matéria prima dos processos são os autos que contém as provas dos crimes cometidos, diferentemente do que havia sido praticado contra o presidente Lula. Ademais, Barroso é apenas um dentre os ministros e todos os processos serão analisados por diversos de seus outros pares.

Quanto à perniciosa cobrança do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, dizendo que “Se não houver um esclarecimento em relação a isso, mesmo uma retratação quanto a isso, até para se explicar a natureza do que foi dito, evidentemente que isso pode ser interpretado como uma causa de impedimento ou suspeição”, soa como mais uma anedota ou cortina de fumaça para o destino do ex-presidente Bolsonaro que a cada dia se chafurda na sua trajetória de corrupção.

O que mais causa estranheza nessa atitude de pseudomoralidade da imprensa burguesa em cobrar uma liturgia do cargo em relação ao Barroso é que, tanto num passado muito recente quanto na história do Brasil, ela não cobrou, em nenhum momento, esse comportamento dos golpistas. Não cobrou a atitude do ex-presidente que redundou na morte de mais de 700 mil pessoas, aliás, se tem alguém que deve realmente desconfiar do judiciário, que me desculpe Montesquieu, é a classe dominada. Ao longo de nossos 523 anos, ela sempre foi conivente com os dominantes, desde o genocídio indígena, a escravidão, o preconceito, o racismo e todos os golpes de nossa história. Nos tempos que correm, felizmente, o judiciário está tentando reparar seus erros, não por uma questão de “parcialidade”, mas pela contingência e por ter entendido que a cadela do fascismo está sempre no cio e, agora, nesse exato momento, perceberam que as pedras atiradas para cima estão caindo em suas próprias cabeças. Não é por acaso que juízes são ameaçados de morte e humilhados pelos cidadãos antidemocráticos que eles mesmos criaram pela omissão histórica nas penas do alto de suas magistraturas. Também não podemos esquecer que este mesmo ministro, Luís Roberto Barroso, foi conivente com o golpe contra a presidenta Dilma, a prisão de Lula e, obviamente, de uma forma ou de outra contribuiu com a eleição de Jair Messias Bolsonaro.

Enfim, apesar da proposta, em especial, de refutar o editorial do Estadão, o artigo também pode ser usado para se interpretar o ensurdecedor silêncio de toda a grande imprensa corporativa e a serviço da classe dominante como O Globo, Folha de São Paulo, Veja, Isto É e tantas outras no que diz respeito as ameaças e manobras chantagistas do corrupto presidente do Congresso Artur Lira, bem como os ataques sistemáticos de deputados e senadores bolsonaristas contra o MST o STF, inclusive, com permanentes e insanas tentativas de cassar mandato de deputadas da esquerda. Sem esquecermos do policiamento diário nas falas do presidente Lula. Um exemplo disso se dá sobre a afirmação de Lula de que a democracia é relativa. Não parece ser um ato de ignorância, mas de má fé essa pretensa “crítica” (entre aspas porque a verdadeira crítica precisa ser fundamentada, não se trata de uma mera opinião, pois significa colocar o pensamento em crise, ou seja, movimentar as ideias de compreensão do mundo).

Cumpre-nos entender que não existe uma democracia absoluta. Não dá para idealizar a democracia (demos ou “povo” e kratos ou “poder”) e acreditar na sua originalidade, considerando que mesmo na Grécia, onde nasceu o termo, ela não se aplicava às mulheres, aos habitantes de fora da pólis (cidade) e ainda existiam escravos. Se, conforme Abraham Lincol, “A democracia é o governo do povo, pelo povo, para o povo”, faz-se mais que necessário entender o que é o povo no nosso país. Obviamente, o conceito de povo é o conjunto das pessoas que vivem em sociedade, com uma unidade monetária, compartilham a mesma língua, possuem os mesmos hábitos, tradições, e sujeitas às mesmas leis. A burguesia não quer e não se considera povo, considerando que, aqui, o povo são os negros (de Ga-AdangbeYorubaIgboFonAshantiEweMandinga e outros grupos da África Ocidental, nativos da GuinéGanaBeninGuiné-Bissau e Nigéria. Sendo os bantus trazidos de Angola, região do Congo e Moçambique), os indígenas (305 etnias, 274 línguas e 31 dialetos), aqueles que trabalham, que pagam impostos, que servem no exército e que não têm direitos e nem acesso aos próprios bens e riquezas que produzem, pois estes são expropriados pelos capitalistas, tanto nos plano material quanto no que diz respeito ao imaterial da cultura. Não é por acaso que tanto o estado quanto os meios de comunicação entendem a cultura e a arte como, de um lado, a popular e, do outro, a clássica (que não mais existe porque pertenceu a uma época) ou erudita (tentativa de hierarquizar e alijar a classe dominada).   

Isto posto, temos aí a confirmação de que a democracia é realmente relativa, pois ela se dá no tempo e no espaço e cada povo e cada época cria e alimenta o seu significado. E, ainda, para referendar a relatividade da democracia, devemos considerar o regime político, pois em muito se difere a democracia burguesa da democracia socialista. Na primeira, os meios de produção são privados na mão de uma minoria que explora os trabalhadores e, na segunda, são socializados, onde a maioria detém o controle de sua produção e de seu acesso. Em suma, a democracia numa sociedade burguesa não passa de um eufemismo para “suavizar” a garantia da classe dominante de ter o total domínio sobre a classe dominada, fazendo dos trabalhadores um exército de mão de obra barata cujos corpos e trabalhos não passam de uma mera mercadoria.

E como dizia o dramaturgo, encenador e poeta alemão Bertolt Brecht, “a cadela do fascismo está sempre no cio”. Ainda, num fragmento de seu poema “Aos que virão depois de nós”:

Vós, porém, quando chegar o momento

em que o homem seja bom para o homem,

lembrai-vos de nós

com indulgência”.

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